LÍPIDES, LIPOPROTEÍNAS, ENDOTÉLIO E SUAS RELAÇÕES COM A ATEROGÊNESE
1. Tipos, Função Biológica e Principais Aspectos Metabólicos
Lípides - São um grupo heterogêneo de compostos relacionados direta ou indiretamente com ácidos graxos, que possuem a propriedade de ser relativamente insolúveis em água e solúveis em solventes apolares. Os seguintes lípides são importantes para o ser humano: ácidos graxos, triglicérides (TG) e fosfolípides. O colesterol, considerado geralmente um lípide, é um álcool monoídrico não saturado da classe dos esteróides.
Os ácidos graxos são constituídos por cadeias de carbono hidrocarboxiladas, podendo se apresentar como saturados e insaturados. São exemplos de ácidos graxos saturados, os ácidos láurico, palmítico, mirístico e esteárico e, de insaturados, os ácidos oléico, linoléico e os do grupo ômega-3. Os ácidos graxos têm função energética e participam fundamentalmente da síntese de lipoproteínas e prostaglandinas.
Os TG são formados pela estcrificação do glicerol por três moléculas de ácidos graxos. Têm também papel energético, sendo usados de imediato ou armazenados para posterior utilização.
Os fosfolípides são compostos complexos, formados por glicerol, ácido graxo, base nitrogenada e fósforo.
O colesterol pode se apresentar sob a forma livre ou esterificada (ésteres de colesterol), não sendo encontrado nos vegetais. Juntamente com os fosfolípides, possui função estrutural, formando a dupla camada que constitui as membranas celulares e a camada única que reveste as lipoproteínas. O colesterol desempenha ainda outros importantes papéis no organismo, sendo precursor de ácidos biliares, hormônios esteróides e vitamina D.
Lipoproteínas - Os lípides, por serem parcialmente insolúveis no meio aquoso, são transportados no organismo sob a forma de partículas denominadas lipoproteínas (fig.1) que são formadas por uma capa hidrofílica constituída por fosfolípides, colesterol livre e proteínas, envolvendo um núcleo hidrofóbico que contém TG e colesterol esterificado. As proteínas são denominadas apolipoproteínas ou apoproteínas (apo). Estas, além da sua função estrutural, interagem com receptores da membrana celular e/ou atuam como co-fatores enzimáticos.
As fontes de lípides no organismo são a síntese interna (endógena) e a alimentação (exógena).
Ciclo exógeno - Tem início com a absorção de material lipídico proveniente da alimentação e sua incorporação nos quilomícrons (Qm) sintetizados pelas células intestinais. Caracterizam-se por transportar o colesterol da dieta e ser ricos em TG, tendo como apo fundamental a B-48.
Os Qm entram na circulação linfática e ganham a corrente sangüínea pelo dueto torácico, podendo receber diferentes apos (A, C e E) de outras lipoproteínas. Nos capilares, os Qm entram em contato com a enzima lipase lipoprotéica (LLP) que, ativada pela apo C-11, hidrolisa os TG, retira os ácidos graxos e torna-os partículas de menor tamanho (remanescentes de quilomícrons: R-Qm), Os R-Qm são removidos da circulação pelos receptores localizados nas células hepáticas, sendo então metabolizados.
Ciclo endógeno - Tem início com a síntese hepática das VLDL (very low density lipoproteins ou lipoproteínas de muito baixa densidade), as quais contêm principalmente TG e as apos B -100, E e C. Na circulação capilar, as VLDL entram em contato com a LLP, dando origem aos remanescentes de VLDL (R-VLDL) ou IDL (intermediate density lipoproteins ou lipoproteínas de densidade intermediária). Essas partículas seguem dois caminhos: cerca de dois terços das IDL podem ser captados no fígado, pelos receptores de apo B/E e degradados em seus componentes. O terço restante sofre ação da lipase hepática, principalmente no fígado, formando as LDL. Tanto as LDL como as IDL são retiradas da circulação pelos receptores celulares BIE, existentes principalmente no fígado. Vale salientar que as LDL são as principais carreadoras de colesterol para os te- cidos periféricos. Uma vez no interior das células, essas lipoproteínas são fragmentadas, liberando colesterol e aminoácidos. A síntese de colesterol e dos receptores B/E pela célula varia na razão inversa da concentração de colesterol livre intracelular.
Parte do material liberado pela ação da LLP sobre os Qm e as VLDL é utilizada na fabricação de outra lipoproteína: HDL (high density lipoproteins ou lipoproteínas de alta densidade). As partículas de HDL (sintetizadas no intestino e no fígado) têm como componentes principais a apo AI (adquirida principalmente no fígado) e os fosfolípides. Essas partículas, na sua forma inicial, apresentam formato de disco, sendo chamadas de HDL nascentes. As HDL têm grande importância no transporte de colesterol dos tecidos periféricos para o fígado (transporte reverso de colesterol).
Transporte reverso de colesterol - As HDL nascentes captam colesterol não esterificado dos tecidos periféricos pela ação da enzima lecitina-colesterol-acil-transferase (LCAT), formando as HDL maduras. Estas levam o colesterol para o fígado por duas vias: 1) diretamente e 2) transferindo os ésteres de colesterol para outras lipoproteínas (principalmente as VLDL), pela ação de uma proteína de transferência de ésteres de colesterol (CETP cholesterol estertransferprotein). Uma vez no fígado, o colesterol proveniente dos tecidos pode ser reaproveitado, participando de outras vias metabólicas, ou execretado na bile (principal via de eliminação), com reabsorção de cerca de dois terços do mesmo (ciclo êntero-hepático).
2. Lp(a), Lipoproteínas Modificadas e LDL Densas
A Lp(a) é uma lipoproteína com estrutura básica semelhante à da LDL, com apo(a) ligada à apo B-100. Esta apo(a) apresenta semelhança estrutural com a molécula do plasminogênio tecidual. Os níveis séricos da Lp(a) são determinados geneticamente e não sofrem influências ambientais significativas. Vários estudos têm sugerido que valores séricos elevados de Lp(a) constituem fator de risco independente para doença aterosclerótíca (DA).
As partículas de lipoproteínas podem sofrer modificações na sua estrutura e, conseqüentemente, no seu comportamento biológico. Uma dessas modificações ocorre por oxidação. Nesse processo, os radicais livres decorrentes do metabolismo celular normal ou produzidos em excesso em condições anormais, seqüestram radicais hidrogênio de ácidos graxos insaturados das lipoproteínas, modificando seu arranjo molecular e sua função. As apoproteínas também podem sofrer o mesmo processo, com modificação da sua estrutura e função.
Além de poder sofrer modificação na sua estrutura, as lipoproteínas nativas podem apresentar heterogencidade numa mesma classe, com diferentes significados na fisiopatologia da aterogênese. As partículas de LDL parecem ser mais aterogênicas quanto menores e mais densas. Há estudos que sugerem que essas partículas de LDL pequenas e densas são mais suscetíveis à oxidação do que as LDL maiores e menos densas.
3. Endotélio e aterogênese
O endotélio participa ativamente no processo de aterogênese e suas complicações. Sofre ação direta de fatores de risco, como hipercolesterolemia (elevação das LDL), fumo e hipertensão arterial (HA), e sua suscetibilidade aos mesmos parece ter caráter hereditário.
A disfunção endotelial caracteriza-se por diminuição na resposta vasodilatadora ou pela resposta vasoconstritora à ação da acetilcolina. Isto tem sido observado em artérias sistêmicas de pacientes com hipercolesterolemia, sem doença arterial coronariana (DAC) manifesta, e nas artérias coronárias (seguimentos não obstruídos) de portadores de DAC.
Esta disfunção parece ser decorrente da redução na síntese de oxido nítrico (substância com ação vasodilatadora) pelo endotélio ou pelo aumento na sua degradação ou por outras causas. Esses efeitos se-riam conseqüência da ação das LDL oxidadas
(LDL-o). A formação das LDL-o é etapa importante para sua remoção eficiente por receptores específicos (scavengers receptors, ou receptores de remoção) dos macrófagos (monócitos atraídos da corrente sangüínea). A ação desses receptores permite acúmulo excessivo de ésteres de colesterol no interior dos macrófagos, levando à formação de "células espumosas", principais responsáveis pelo conteúdo de colesterol da placa de ateroma.
II. DETERMINAÇÕES LABORATORIAIS
O perfil lipídico é definido pelas determinações do colesterol total (CT), TG, HDL-c (colesterol contido nas HDL) e cálculo do LDL-c (colesterol contido nas LDL), utilizando-se a fórmula de Friedewald: LDL-c = CT (HDL-c + TG/5). Esta fórmula não deve ser empregada quando os valores dos TG forem ³400mg/dL*.
Não há indicação para a solicitação dos lípides totais. A eletroforese das lipoproteínas só se justifica quando houver suspeita de formas raras de dislipidemias tipos I, III e V.
Para a obtenção da amostra sangüínea, recomenda-se coleta após jejum de 12 a 14h, Para a determinação de CT e HDL-c não é necessário jejum. Em virtude da interferência de elevados níveis de TG na metodologia, sugere-se evitar a coleta no período pós-prandial, manter a alimentação habitual, evitar a ingestão de bebidas alcoólicas na véspera, não praticar exercício físico imediatamente antes da coleta, permanecer sentado ou deitado por 5min antes da punção venosa e evitar estase venosa prolongada (manter torniquete por menos de 2min).
A interpretação dos resultados do perfil lipídico deve levar em conta fatores como: a) condições que diminuem seus valores, como a fase aguda do infarto agudo do miocárdio (IAM), enfermidades agudas ou crônicas debilitantes (por exemplo, câncer) e pós-operatório de cirurgias de grande porte. Em condições clínicas reversíveis, o retorno aos valores habituais pode ser lento, até cerca de 3 meses; b) variações metodológicas e/ou biológicas. Assim, admite-se em até 5% a variação entre determinações simultâneas do CT, sendo a ideal<3%. Para os TG, essa variação pode chegar a 20% e para o HDL-c, até 10%.
Resultados anormais do perfil lipídico inicial ou discordantes na seqüência de acompanhamento clínico, recomendam a repetição da determinação dentro de 8 a 15 dias, tendo-se o cuidado de manter os mesmos hábitos de vida. Caso esta segunda determinação difira das porcentagens citadas, deve-se realizar uma terceira dosagem, com intervalo idêntico. O valor a ser considerado será representado pela média dos dois valores mais próximos.
Recomenda-se, sempre que possível, que as determinações iniciais e as subseqüentes sejam feitas no mesmo laboratório, evitando-se assim variações interlaboratoriais.
A obtenção de valores confiáveis depende do controle de qualidade praticado pelo laboratório, atestado pelos "Programas de Excelência para Laboratórios Clínicos" conduzidos por entidades nacionais credenciadas.
Valores de referência dos lípides plasmáticos e risco de DAC
1. Valores de referência
Adultos - Os valores de referência para CT, LDL-c e HDL-c no adulto (homens e mulheres com idade>20 anos), atualmente aceitos, são os recomendados pelas Sociedade Brasileira de Cardiologia (Departamento de Aterosclerose), de Patologia Clínica e de Análises Clínicas, e baseados no último Consenso do Programa Nacional de Colesterol do Estados Unidos 1993 (NCEP-National Cholesterol Education Pro-gram). Os valores para os TG são os recomendados pela Sociedade Européia de Aterosclerose (tabela 1).
Crianças e adolescentes - Os valores de referência para as frações lipídicas adotadas por este Consenso são os recomendados pelo NCEP e por Kwiterovich (tabela 2).
2. Avaliação do perfil lipídico
A presença de DAC ou de outras manifestações de DA (cerebrovascular, carotídea e da aorta abdominal e/ou seus ramos terminais) torna obrigatória a determinação do perfil lipídico, independentemente de idade e sexo.
Adultos - O Consenso recomenda que todos os adultos com idade >20 anos tenham seu perfil lipídico determinado (CT, TG, HDL-c e LDL-c). Nos indivíduos com perfil lipídico desejável e sem outros fatores de risco, as determinações laboratoriais devem ser repetidas a cada cinco anos, desde que as condições clínicas e hábitos de vida permaneçam estáveis. Este intervalo poderá ser reduzido a critério médico.
Crianças e adolescentes - A determinação sistemática do perfil lipídico na infância e adolescência não é recomendável. Entretanto, deve ser realizada entre os 2 e 19 anos de idade nas seguintes situações: a) avós, pais, irmãos, tios e primos de primeiro grau com DA manifesta (DAC e/ou doença cerebrovascular e/ou periférica) antes dos 55 anos, para o sexo masculino, e dos 65 anos, para o sexo feminino; b) pa-rentes próximos com CT>300mg/dL ou TG >400mg/dL; c) presença de pancreatite aguda, xantomatose, obesidade ou outros fatores de risco de DAC.
3. Risco de DAC
O risco de DAC aumenta significativa e progressivamente acima dos valores desejáveis de CT e LDL-c. Para o HDL-c, a relação de risco é inversa: quanto mais elevado seu valor, menor o risco de DAC. HDL- c >60mg/dL seria um "fator protetor" de DAC.
As evidências atuais indicam que a hipertrigliceridemia (>:200mg/dL) aumenta o risco de DAC, quando associados HDL-c diminuído e/ou LDL-c aumentado.
O risco individual de DAC sofre influência do número, do grau de anormalidade, do potencial de morbidade e mortalidade e da possibilidade do controle efetivo dos fatores de risco presentes (quadro 1). A presença de manifestação de DAC ou de DA em outro território seleciona, por si só, uma população de alto risco, mesmo que haja aparente ausência dos outros fatores de risco conhecidos.
Até o momento, os mais importantes fatores de risco são: hipercolesterolemia por aumento do LDL-c, HA, tabagismo, diabetes melito e hereditariedade (DA prematura).
Estresse, aumento dos valores de Lp(a), apo-B e fibrinogênio, e diminuição de apo-AI são fatores de risco cuja utilização clínica ainda depende de valor epidemiológico definido, facilidade de mensuração e/ou padronização laboratorial uniformemente aceita.
Fonte:http://www.scielo.br/scielo.php
Tatiane da silva vieira
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